Em entrevista ao blog do Fausto Macedo, do Estadão, nosso sócio José Ricardo Alves, comenta sobre a Lei 14.365 que altera pontos do Estatuto da Advocacia, do Código de Processo Civil e do Código de Processo Penal.
Em uma de suas últimas megaoperações, em setembro de 2020, a Lava Jato no Rio de Janeiro abriu buscas contra bancas de advocacia renomadas no meio político. Começava ali a reação mais incisiva da classe para preservar os escritórios e as prerrogativas dos advogados.
A Operação Esquema $, que mirou bancas tradicionais, colocadas no centro de suspeitas de corrupção no Sistema S, foi trancada em abril. A 1.ª Vara Criminal Especializada do Rio reconheceu que houve uma tentativa de “criminalizar o exercício da advocacia”.
A proposta de restringir buscas nos escritórios e locais de trabalho dos advogados, no entanto, ficou fora da Lei 14.365. O texto sancionado no último dia 2 atualiza as regras para o exercício da advocacia. O presidente Jair Bolsonaro (PL) vetou o trecho com o argumento de que a medida “contraria interesse público”.
O projeto previa que o cumprimento dos mandados contra advogados ficasse restrito a situações “excepcionais” e estivesse fundamentado em “indícios” mínimos de irregularidades. Também proibia as buscas com base apenas em delação premiada. Garantia ainda que um representante da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) e o próprio advogado alvo das buscas estivessem presentes no momento em que o material apreendido fosse analisado, o que segundo Bolsonaro poderia “prejudicar a eficiência” dos órgãos de investigação.
Para o presidente da Associação Nacional dos Membros do Ministério Público (Conamp), Manoel Murrieta, os vetos devem ser mantidos. Ele afirma que a inviolabilidade dos escritórios de advocacia “não pode chegar ao extremo de acobertar situações criminosas”.
“Nós entendemos que a advocacia é fundamental, mas quando o profissional da advocacia está envolvido em uma rede criminosa, ele sai da figura de profissional e passa a ser um autor ou coautor e, nesse momento, nós não concordamos com situações que venham a impedir a revelação da verdade”, defende.
O presidente da OAB, Beto Simonetti, vai se reunir nesta semana com o presidente do Senado, Rodrigo Pacheco (PSD-MG), para tentar articular a derrubada dos vetos. Também pediu audiência com o presidente da Câmara, Arthur Lira (PP-AL), e tem conversado com outros parlamentares.
“É uma questão prioritária. Há um interesse legítimo da advocacia nesse tema. Nós temos conversado com parlamentares e vamos trabalhar de forma incansável para a derrubada dos vetos”, afirma Simonetti ao Estadão.
Enquanto aguardam o desfecho das negociações, as principais entidades de advogados começaram a se organizar para analisar as consequências práticas das mudanças já aprovadas. Comissões temáticas da própria OAB, da Associação dos Advogados de São Paulo (AASP) e do Instituto dos Advogados Brasileiros (IAB) se dividem internamente para estudar o texto.
“Estamos todos ainda deglutindo um pouco as alterações. Têm mudanças que foram a rigor meramente explicitadoras do que já existia e outras foram realmente relevantes. Vamos ver na prática o que virá”, resume o presidente da AASP, Mário Luiz Oliveira da Costa.
A Lei 14.365 altera pontos do Estatuto da Advocacia, do Código de Processo Civil e do Código de Processo Penal. As previsões dispõem sobre a fiscalização da classe, as prerrogativas dos advogados, os honorários advocatícios e os limites de impedimentos ao exercício da advocacia.
Para o presidente da OAB, uma das principais vitórias para a classe foi o endurecimento da pena para quem violar as prerrogativas dos advogados. Essas garantias são previstas em lei e garantem, por exemplo, que o advogado pode entrar livremente em tribunais, cartórios, delegacias e prisões ou que magistrados são obrigados a recebê-los mesmo sem hora marcada. O crime estava previsto na Lei de Abuso de Autoridade como um delito de “menor potencial ofensivo”, por isso a pena não passava de um ano. Agora a punição pode chegar a quatro anos de prisão.
“Isso, para a alma da advocacia, é uma proteção, é um escudo, é a valorização da dignidade da classe”, defende Simonetti.
O texto também deixa claro que a Justiça não pode interferir nos honorários dos advogados quando considerar que o valor da causa é alto. O Código de Processo Civil já prevê as regras para definir essa remuneração, mas era comum que juízes se valessem de um mecanismo chamado “apreciação equitativa”, pensado para estabelecer os honorários em processos de valor irrisório, também nas ações mais “caras”, reduzindo o montante esperado pelos advogados.
“Não importa mais se a causa contempla um valor tido em tese pelo Judiciário como exorbitante e aí, com isso, ficava na subjetividade do juiz dizer: ‘Não. O advogado não merece ganhar tudo isso’. A Justiça não pode aquilatar quanto vale o trabalho do advogado. Isso para a gente é uma vitória estrondosa”, avalia o presidente da OAB.
A lei declara ainda que a Ordem dos Advogados do Brasil é a única entidade de classe com atribuição para fiscalizar o exercício profissional e o recebimento de honorários pelos advogados.
Outra mudança relacionada aos honorários é que agora, se algum cliente tiver todo o patrimônio bloqueado por ordem judicial, os advogados têm direito a pedir a liberação de até 20% dos bens congelados a título de remuneração e reembolso de gastos com a defesa.
Para o vice-presidente da seccional da OAB em São Paulo, Leonardo Sica, a mudança “prestigia o próprio direito de defesa”. “A pessoa não fica sem advogado em caso de bloqueio”, afirma.
A regra só não se aplica a bloqueios determinados com base na Lei das Drogas. A ideia foi impedir que facções criminosas, como o Primeiro Comando da Capital (PCC), que por vezes amargam confiscos milionários, usem os advogados para se capitalizar.
Ainda assim, membros do Ministério Público veem com reserva a mudança, porque há outras tipificações que permitem o bloqueio do patrimônio dessas organizações criminosas.
“A gente vislumbra possibilidade de uma fraude ou um caminho possível de burla para liberação de patrimônio. Quando se fala de bilhões bloqueados do tráfico ou do crime organizado, 20% representa muita coisa. Isso pode tirar a nobreza do instituto, que é remunerar o profissional pelo seu trabalho”, opina Murrieta.
A lei reconheceu ainda que os prazos dos processos na esfera penal vão ficar suspensos entre 20 de dezembro e 20 de janeiro, o que garante um período de “férias” aos advogados. Essa previsão já existe para ações na área cível. O “recesso” só não vai valer para casos urgentes, réus presos ou processos da Lei Maria da Penha.
Agora os advogados estão proibidos legalmente de entregar clientes se fecharem acordos de delação premiada. Para o vice-presidente da OAB-SP, “todo o conjunto ético da profissão” já orientava a classe nesse sentido. Na avaliação dele, questões “realmente problemáticas” envolvendo as colaborações, como bancas que defendem, simultaneamente, mais de um delatado ou até delatores e delatados, foram deixadas de fora.
“Quando eu defendo mais de um delator, eu estou pegando informação de um e de outro e às vezes a informação de um pode prejudicar o outro. A tentativa de tratar a delação foi insuficiente. Tratou-se do que não precisava e o que precisava não foi tratado. Foi desperdiçada uma chance de enfrentar os reais problemas”, avalia Sica.
Outro ponto que, na avaliação do vice-presidente da OAB de São Paulo deveria ter sido incluído no projeto, é a instituição de eleições diretas para a presidência da OAB Nacional. Atualmente, a escolha da cúpula da entidade é feita por meio do voto dos conselheiros federais.
“Nós, aqui de São Paulo, gostaríamos que a lei tivesse abordado um pouco da democracia interna da OAB, inclusive permitindo eleição direta do presidente nacional. Isso, mais uma vez, não foi feito”, lamenta.
Um ponto polêmico é o que cria a figura do “advogado policial”. Por lei, algumas carreiras são proibidas de exercerem a advocacia. É o caso de magistrados, membros do Ministério Público, diretores e gerentes de instituições financeiras, militares da ativa e policiais. No entanto, uma emenda do deputado Capitão Wagner (PROS-CE) autorizou policiais e militares formados em Direito a advogarem em causa própria. A OAB ainda avalia como vai implementar a medida e estuda a emissão de uma carteira especial para esses profissionais.
“A gente não viu sentido nisso. Tem dois problemas: o privilégio para uma classe e uma contrariedade, em termos conceituais, porque pode estimular os policiais a advogarem em causa própria. A lei não proíbe, mas eticamente a gente sempre diz que advogar em causa própria não é bom”, opina o presidente da OAB de São Paulo.
A lei também autoriza a prestação verbal de serviços de consultoria e assessoria jurídicas. A prática é comum, sobretudo na advocacia mais popular, e na avaliação de advogados ouvidos pelo Estadão agiliza a profissão.
O criminalista Pierpaolo Cruz Bottini avalia que o dispositivo também traz “segurança jurídica fiscal” para o advogado. “Isso não significa evidentemente uma carta branca. Não significa que o serviço de advocacia não precisa ser comprovado e não precisa ser demonstrado”, pondera.
A classe também conseguiu ampliar sua participação nos julgamentos. Os advogados já têm direito a um prazo de 15 minutos para fazer a defesa de seus argumentos antes dos tribunais analisarem um processo: é a chamada “sustentação oral”. A diferença é que agora esse dispositivo pode ser usado no julgamento de recursos contra decisões individuais dos magistrados levadas ao colegiado. Os advogados também vão poder pedir a palavra para “esclarecer equívoco ou dúvida” em qualquer tribunal, comissão parlamentar de inquérito ou órgão de deliberação coletiva da administração pública.
O presidente do Superior Tribunal de Justiça (STJ), Humberto Martins, disse que a Corte não tem “viabilidade tecnológica” para colocar a mudança em prática no plenário virtual – quando ministros não se reúnem para debater as ações e apenas registram os votos em uma plataforma online. Martins decidiu que, se o advogado pedir para usar a palavra, o processo deve ser retirado da pauta até segunda ordem.
Em outra frente, a Associação dos Magistrados Brasileiros (AMB) sugeriu que o Conselho Nacional de Justiça (CNJ) recomende aos tribunais que as sustentações orais sejam gravadas, “sob pena de restar prejudicada a prestação jurisdicional em tempo razoável”. O projeto de lei trazia a previsão de que essa argumentação deveria ser feita “em tempo real e concomitante ao julgamento”, mas o trecho foi barrado por Bolsonaro, que disse que a mudança traria “risco à celeridade no trâmite dos processos”.
“É importante ter presente que não é a sustentação oral de 15 minutos que vai atrasar a celeridade do julgamento”, rebate o presidente da AASP, Mário Luiz Oliveira da Costa.
Com o veto, advogados temem um “efeito rebote”. O medo é que todas as sustentações orais sejam convertidas em um vídeo-memorial, sem garantia de que os magistrados assistam à gravação, como já ocorre nas sessões virtuais.
“A questão da sustentação oral se confunde com os problemas da sessão virtual de julgamento. Nós não somos contra propriamente a sessão virtual de julgamento, mas é preciso tomar uma série de cuidados. Por exemplo, assegurar que o advogado possa fazer a sustentação oral, nem que seja para ter um dia em que os casos pautados sejam objeto de sustentação oral e depois fiquem então uma semana aguardando os votos”, acrescenta.
O texto também garante que, a partir de agora, os advogados vão poder acessar e retirar processos mesmo que eles estejam classificados como sigilosos.
“Muito importante essa previsão, haja vista as constantes e injustificáveis violações ao acesso dos profissionais da advocacia a procedimentos em segredo de justiça”, avalia o advogado Gamil Föppel.
Outra mudança é a que autoriza o compartilhamento do local de trabalho com outras bancas de advocacia ou empresas e a associação simultânea dos advogados a diferentes escritórios.
O advogado José Ricardo Alves Ferreira da Silva, especialista em direito empresarial, considera a alteração um avanço para facilitar o compartilhamento da “expertise” entre diferentes sociedades.
“Sempre lembrando que essa associação deve respeitar os termos do contrato firmado entre o advogado e o escritório do qual ele já faz parte”, alerta. “É uma inovação muita boa. Esses relacionamentos acabam ficando mais transparentes. Dá mais segurança.”
Para o vice-presidente da OAB de São Paulo, essa alterações acabam “forçando um caráter mais liberal” ao trabalho.
“A profissão de advogado é ultra-regulada. Diminuir algumas regulações torna a profissão mais liberal”, resume Sica.